segunda-feira, 31 de agosto de 2020

O diabo




- ai me perdi... 

-você estava falando de ter medo, sei la.

- ah sim, é... to perdendo o medo da imprevisibilidade. 

- ta vivendo o tempo espiralado? 

- não sei. Essa binaridade de "linear ou espiral" é uma merda. 

- nós não somos binárias mesmo sendo femininas... digo, nós travestis. Não somos homens nem mulher e bla bla bla. Senti isso... lembrei, sei la. Acho que tem a ver com frequência também, né?

- travesti é um gênero, nada mais. Um gênero! 

- sim, e foda-se. To dizendo da frequência do nosso corpo transfigurado. Ou, da frequência que possibilita nossa transfiguração. 

-hum. eai amore? 

- então não to falando de gênero... mas to falando especificamente de nós travestis. que confusão! porra, que difícil dizer sobre nosso corpo. 

- pois é, a merda é essa. a língua que a gente se comunica é uma desgraça. To tentando falar COM o corpo. Sei la também 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

- eai, me conta como foi!

-não sei se consigo; é inexplicável, minha avó diz que....

-então porque você voltou? 

- sim eu decidi por isso, mas as vezes me arrependo... ou me canso demais, sei la. 

-  é, eu estou perdendo o medo de sua morte...

- e eu de ser inexplicável também... 

é inexplicável.. por isso crio lembretes e convites à mim mesma. Eu não tinha medo... subia um troço em cima de mim e por dentro de mim... Eu quanto mais eu me esquecia mais eu me lembrava que daqui ja não mais sou. 
- se você chegou aqui, é porque  você passou por vários ciclos.
- sim amiga... 
eu lembrei de meus vícios e esqueci de ter medo deles. 
- nossa, me emecionei muito. sou feliz por ja ter te encontrado nessa vida amiga. Somos uma família. 
-sim amiga, a espiritualidade me disse sobre um prazer... 
-a vida tem que ser prazerosa. 

terça-feira, 11 de agosto de 2020

 Escrevo sobre aquilo que entidades me cotam, algumas coisas eu compartilho outras eu guardo segredo. Escrevo com medo, com preguiça, com raiva, com vontade de desistir. Ai depois eu sinto prazer... as vezes durante também. Mas é sempre muito cansativo. E na leitura não é diferente... ano passado comecei a ler A Parabola do Semeador... precisei de 6 meses para ler metade do livro. Depois demorei mais 3 meses para consegui tocar nele novamente e dar continuidade a leitura, ai quando terminei fiquei feliz e desde então estou supreendida com o poder da obra de Octavia Butler em minha vitalidade... ela me redireciona, me puxa, me larga... 

Mas nunca senti medo de Octavia ou de Jota. Medo não há, e muito há a segurança de que não preciso ficar me explicando muito para me comunicar. Elas me ensinam a comunicar-me. No inicio de minha transição de genero eu lia muito Jota... a escrita me ajudou a criar Castiel. Ler Octavia me ajuda a abandonar Castiel... que é o abandono da nomeação... tornar-me inominável, insôndável, imprevisível... 

As duas ficcionam, e penso que ficcionar é manipular muito bem essa linearidade que nos constituem.  Da linguagem Portugues eu não espero nada além do que ela pode me oferecer: o mundo amaldiçoado. Mas as altoras me ajudam a usar a palavra como ferramenta de convite... me ajuda a criar convites e lembretes para se perder na Kalunga; lugar onde as formas se diluem e onde a força vital  toma o lugar da raça.